sexta-feira, 12 de novembro de 2010

a força de uma pedra-carta

 Caros amigos,
vi este filme e recomendo com empenho!
uma ótima reflexão sobre a morte,
sem pieguices, ao meu ver.
Quanto ao título do post, ahh isso tem a ver com algo
que achei bem sugestivo, uma forma de comunicar afeto
e interação mais profunda com outro ser humano.
o que tem a pedra-carta a ver com o filme?
isso eu coloquei aqui para deixar você
com mais curiosidade!!
um grande abraço!!

Veja este artigo de Claudia Perrotta.

A PartidaDireção: Yojiro Takita - Japão, 2008- Por que tanto esforço para morrer? – pergunta Daigo observando a luta de alguns salmões para vencer a correnteza, enquanto outros, já sem vida, vão sendo levados pelas águas do rio. – É triste...
- Talvez eles queiram voltar para o lugar onde nasceram... – responde o homem que lhe faz companhia em uma das pontes da província de Yamagata, no Japão.
Esse diálogo parece sintetizar muito bem o tema do filme A Partida, OKURIBITO, dirigido por Yojiro Takita, ganhador do Oscar de 2009 como melhor filme de língua estrangeira. Bem, a língua pode ainda causar estranhamentos no ocidente, mas as várias faces da morte e a forma como são abordadas na narrativa nos igualam a todos, mesmo que os rituais de despedida ganhem contornos diversos em cada cultura.
Na região em que a história acontece, ainda é comum o Acondicionamento, que tem como finalidade permitir a partida pacífica do falecido. Antigamente, esse ritual era realizado pelos próprios familiares, mas, agora, há empresas especializadas em “ajudar a partir...” - ou melhor: “ajudar os que partiram”. Foi esse “equívoco” no anúncio de jornal da Agência NK, obviamente proposital, que fez com que Daigo para lá se dirigisse em busca de um emprego, pensando se tratar de uma agência de viagens. A orquestra em que tocava violoncelo, o grande sonho de sua vida, fora dissolvida, e ele se viu obrigado a abandonar Tókio, junto com sua jovem esposa, e retornar para a casa em que nascera e vivera por muitos anos, em Yamagata, herança da mãe que havia morrido há pouco tempo.
- NK significa Noukan, “pôr no caixão” - explica seu novo chefe.
Daigo titubeia - seria esse o trabalho de sua vida, ajudar os que partiram? Como contar à esposa sobre o novo emprego?
- É uma agência de viagens? - ela pergunta assim que o recebe de volta.
- Não, é para organizar cerimônias - responde Daigo utilizando-se do mesmo artifício do chefe no anúncio para conseguir um assistente de trabalho – a ambiguidade.
Ambiguidade é, por sinal, também um traço que caracteriza o que vivemos diante da morte e que vai ganhando contornos no filme. Seria apenas uma passagem para outra vida, e não o fim? Ou algo que nos coloca diante da falta de sentido de nossas lutas? Continuamos vivos na memória dos que ficam? Ou vamos embora junto com um corpo que se decompõe, nos causando tanto horror e repugnância? Seria uma forma de voltar às origens? Foi isto que aconteceu com Daigo.
A morte de seu projeto de futuro, tornar-se um violoncelista de sucesso, do que havia idealizado para si e de si, a constatação dos limites de seu talento como músico o levaram de volta às origens, ou, melhor dizendo, ao reencontro com uma morte anterior, a partida do pai, que abandonara a família quando ele tinha apenas 6 anos para viver com outra mulher.
“Por que a vida está me pondo à prova?”, ele se pergunta quando começa a intuir que algo o havia destinado para o trabalho de Acondicionamento. A melancolia e profunda tristeza que marcam as expressões de Daigo no início do filme, a vergonha de exercer essa “profissão” vão dando lugar à serenidade, à certeza de que estava no caminho certo. Ele vai se dando conta de que, até aquele momento, sua vida havia sido inexpressiva e passa a se dedicar ao ritual de uma forma muito particular, com talento e estilo próprios, compreendendo profundamente seu sentido primordial:
“Fazer reviver um corpo frio e dar a ele a beleza eterna. Isso feito com muita tranquilidade, precisão e, sobretudo, com infinito afeto. Participar do último adeus e acompanhar o morto em sua última viagem. Nisso eu percebia uma sensação de paz e extraordinária beleza”.
E todo esse sentido era materializado nos gestos, em cada passo do ritual: lavar o corpo significa limpá-lo da fadiga, da dor e dos desejos deste mundo – representa o primeiro banho e um novo nascimento; vestir o morto é para preservar sua dignidade; a maquiagem que se sobrepõe à palidez tem como finalidade deixar os entes com a lembrança do rosto em vida, e não na morte...
Enquanto assistem o Acondicionamento, todo esse último cuidado com o corpo de quem partiu, em silêncio, os parentes vão sendo tomados pelas lembranças, muitas vezes doloridas, arrependem-se de seus erros, expiam suas culpas... enfim, despedem-se, cada um a seu modo. Trata-se, antes de tudo, de um ritual de reparação. Tempo e espaço parecem ficar suspensos, enquanto transitamos entre a concretude da morte, materializada no corpo inerte, no cheiro, na palidez, no caixão, e toda a carga de emoção e subjetividade a que nos remete.
Há também os objetos/símbolos que guardam algo de quem partiu – a filha que oferece o batom que a mãe mais gostava para a maquiagem final, as meias brancas e compridas de estudante que a avó sempre teve vontade de usar e só agora seu desejo é realizado... E a pedra que Daigo reencontra junto com o violoncelo que tocava para os pais quando criança, e que o remete à única lembrança que tem do pai, de quem não guarda nem mesmo a imagem do rosto.
“É uma pedra-carta” – conta para a esposa, grávida do primeiro filho. “Antes da invenção da escrita, os antigos procuravam uma pedra que expressasse seus sentimentos e davam aos entes queridos. Quem recebia a pedra podia ler os sentimentos do outro pelo peso e pela textura. Por exemplo, uma pedra lisa era sinal de coração sereno; uma pedra áspera, de que a pessoa estava em dificuldades”.
- Quem lhe contou essa história? – pergunta a esposa.
- Meu pai. Ele me dizia que íamos trocar uma pedra-carta todos os anos, mas aquela foi a única. Pai desnaturado.
Difícil perdoar, até mesmo para quem se especializou em um ritual de separação. Mas como ir adiante, viver o luto, a dor da perda sem um corpo para velar? Esta é mais uma das faces da morte que nos é apresentada com lirismo no filme A Partida.
Não vamos revelar aqui o reencontro final entre pai e filho, e que permite a Daigo seguir adiante, com sua história reposicionada e ressignificada. É preciso realmente assistir esse filme delicado, que transpõe e emoldura na tela, usando com maestria os artifícios e recursos da linguagem do cinema - cores, luzes, imagens, sequência de planos, além da trilha sonora belíssima – todo o ambiente acolhedor de que necessitamos para nos aproximar de um tema que nos desperta tantos sentimentos contraditórios, memórias e dores intensas. A genialidade está em nos fazer rir e chorar, rever concepções, crenças, uma experiência estética que nos transforma e humaniza.

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